Sérgio Telles
psicanalista e escritor
O que é uma ideologia? É um sistema de crenças no qual estão abordadas e resolvidas todas as grandes questões que angustiam uma determinada parcela da humanidade num certo período do tempo. Ela fornece explicações sobre o passado, organiza o presente e estabelece rotas para o futuro. Com facilidade, a ideologia pode transformar-se num programa político, traçando objetivos e prioridades a serem alcançados através de uma ação organizada. A ideologia permite que o poder seja exercido de forma discreta, acobertado por crenças que simultaneamente o disfarçam e legitimam. O exemplo padrão da ideologia é a religião, qualquer religião. Outros exemplos são os partidos políticos.
No século passado, tivemos duas expressões máximas de organização estatal ideológica, o nazismo e o stalinismo, que deram origem a várias cópias mais circunscritas e regionais.
Assim como não se pode conceber estes totalitarismos sem a propaganda política que divulgava sua ideologia monolítica, não se pode abordar a atual produção de bens do capitalismo sem a publicidade maciça que nos induz ao consumo.
A publicidade comercial é a herdeira direta da propaganda política-ideológica. Por isso mesmo, a publicidade veicula uma ideologia própria das democracias ocidentais regidas pelo capitalismo globalizado e pela ditadura dos mercados, que transcendem e subjugam as antigas soberanias nacionais – a ideologia do consumo.
Esta atual ideologia promete a felicidade através da aquisição de uma mercadoria. Diz ela: “Compre tal carro e você será feliz, demonstrando seu sucesso. Compre determinada marca de roupa e você será sexy e bem sucedido. Fume tal cigarro ou beba tal bebida e será um vencedor”.
A propaganda cria um mundo completamente distante da realidade. Nele não existe dor e sofrimento, não existe a morte. Existe apenas a possibilidade imediata de alcançar a felicidade, entendida como a posse de um determinado bem de consumo.
Além disso, a propaganda vende a ideia de um “direito” à felicidade. É uma sutil perversão de uma grande conquista política conseguida pela democracia. Como reza a Constituição Norte Americana, todos temos o direito de procurar a felicidade, o que não é o mesmo que o direito à felicidade. A diferença é fundamental. A procura da felicidade implica a idéia de liberdade política, a possibilidade de o cidadão fazer – dentro da lei - escolhas que lhe sejam convenientes de acordo com o seu desejo. Mas não se pode falar em direito à felicidade, pois isto implicaria no salto de uma categoria político-social para uma outra, situada em um outro campo, aquele do existencial, do desejo e da fantasia. Quem pode garantir um “direito” à felicidade, se esta é algo evanescente, impossível de generalizar por se configurar de forma singular e especifica para cada um? Por acaso, pode-se falar num “direito” de ser mais feliz, se a felicidade for entendida como ter uma outra dotação de inteligência, ter uma outra aparência, possuir uma outra cor de pele ou outra altura - para se dar alguns exemplos corriqueiros?
A resposta é negativa, pois a distribuição de dotes realizada pela natureza é totalmente aleatória, ao azar, não se submete a nenhuma norma do “direito”.
Entretanto, os avanços da tecnociência médica permitem realizar intervenções antes impensáveis no manejo do corpo humano, possibilitando mudanças no aspecto formal (cirurgias estéticas) e até mesmo no gênero sexual (cirurgias transexuais). É o que faz com que a ideologia do consumo se aproprie destes procedimentos médicos e os ofereça como uma novo bem a ser consumido.
Essa confusão entre direito a buscar a felicidade e direito a ser feliz tem duas consequências imediatas.
Uma delas é do âmbito do psicológico. Ela propicia a negação dos limites inevitáveis e irremediáveis que a realidade impõe a nossos desejos. Afinal, dentro do exemplo acima, haverá sempre pessoas mais inteligentes, mais bonitas, mais altas, do que outras. Ter de reconhecer, admitir e aceitar as diferenças entre o eu e o outro, um outro que poderá ser ou ter tudo aquilo que o eu deseja e não pode ter ou ser é o resultado de um longo e indispensável percurso a ser trilhado pelo ser humano na conquista do crescimento psíquico e emocional.
A outra consequência do embuste promovido pela publicidade é que ao prometer “direitos” impossíveis, ela propositadamente confunde a noção de direitos do cidadão com os direitos do consumidor.
A ideologia do consumo veiculada pela publicidade alimenta o narcisismo infantil existente em todos nós. Ela promete a felicidade e a realização de todas as nossas fantasias onipotentes de beleza, força, encanto, poder, charme sexual. Para tanto, basta comprar tal ou qual mercadoria.
Todos nós, ao vermos um anúncio de qualquer bem de consumo, com todas as promessas de beleza, felicidade, sucesso sexual, afetivo e profissional ao que teríamos acesso com sua aquisição, sabemos que aquilo é um logro, um engano, uma mentira. Mas, lá no fundo, uma parte de nós tende a acreditar, quer acreditar. É justamente aquela parte que se rebela contra os impedimentos e as limitações que a realidade nos impõe e quer restaurar o narcisismo onipotente perdido em nosso desenvolvimento. Ao nos constituirmos como sujeitos, tivemos de abdicar da fantasia de fazermos uma totalidade com a mãe, tivemos de aceitar nossa incompletude e construir, a partir dela, nossa existência.
É por isso que a publicidade comercial funciona. Ela, com grande habilidade, manipula nossos mais regressivos desejos inconscientes.
Sob este aspecto, a psicanálise e a publicidade estão em campos rigorosamente opostos. A psicanálise nos confronta com a falta, a incompletude, por saber que é somente a partir da abdicação do narcisismo e da onipotência que podemos crescer e viver plenamente. A publicidade faz o inverso. Alimenta a fantasia onipotente e narcisista de completude através da aquisição de bens de consumo.
Mas o que acontece quando as pessoas compram o objeto de seu desejo? Elas ficam mais felizes, como promete a publicidade?
Claro que não. Em primeiro lugar porque o desejo humano estará sempre insatisfeito, pois ele se baseia na restauração de uma impossível completude com o corpo da mãe, imagem de paraíso para sempre perdido. Por causa disso, quando se obtém aquilo que se deseja, o obtido imediatamente tende a se desvalorizar e a procura recomeça. De certa forma, a produção capitalista intui isso. Ao planejar a obsolescência de seus produtos, visa, por um lado, o lucro desmesurado; por outro, ao criar sucessivas versões de um mesmo objeto, atende não a critérios objetivos e racionais que deveriam reger a aquisição de bens necessários, mas à economia do desejo, da fantasia, da busca por um objeto, por definição, inalcançável.
De qualquer forma, seja pela própria estrutura do desejo que faz impossível sua satisfação, seja pelas promessas ilusórias da propaganda, o que ocorre após a compra é que, passada a euforia da aquisição, o consumidor se depara com uma grande decepção. Ele constata então que o objeto fetiche que adquirira não o deixa imune ao sofrimento, à dor e à angústia, elementos afetivos inalienáveis da condição humana.
Tal frustração pode descambar numa “depressão”. As aspas vão por conta do excessivo uso deste diagnóstico por parte de leigos e profissionais da saúde, a ponto de torná-lo o atual mal da sociedade. Essa “depressão” difere da efetiva depressão decorrente de perdas e dificuldades de elaborar o luto. Esta “depressão”, tão difundida hoje em dia, decorre do penoso reencontro do consumidor com a realidade (interna e externa), que se mantém inalterada, ao contrário do afirmavam as vãs promessas da publicidade.
(Este artigo foi publicado na revista “E” do Sesc-SP, agosto de 2008, no. 135)
No século passado, tivemos duas expressões máximas de organização estatal ideológica, o nazismo e o stalinismo, que deram origem a várias cópias mais circunscritas e regionais.
Assim como não se pode conceber estes totalitarismos sem a propaganda política que divulgava sua ideologia monolítica, não se pode abordar a atual produção de bens do capitalismo sem a publicidade maciça que nos induz ao consumo.
A publicidade comercial é a herdeira direta da propaganda política-ideológica. Por isso mesmo, a publicidade veicula uma ideologia própria das democracias ocidentais regidas pelo capitalismo globalizado e pela ditadura dos mercados, que transcendem e subjugam as antigas soberanias nacionais – a ideologia do consumo.
Esta atual ideologia promete a felicidade através da aquisição de uma mercadoria. Diz ela: “Compre tal carro e você será feliz, demonstrando seu sucesso. Compre determinada marca de roupa e você será sexy e bem sucedido. Fume tal cigarro ou beba tal bebida e será um vencedor”.
A propaganda cria um mundo completamente distante da realidade. Nele não existe dor e sofrimento, não existe a morte. Existe apenas a possibilidade imediata de alcançar a felicidade, entendida como a posse de um determinado bem de consumo.
Além disso, a propaganda vende a ideia de um “direito” à felicidade. É uma sutil perversão de uma grande conquista política conseguida pela democracia. Como reza a Constituição Norte Americana, todos temos o direito de procurar a felicidade, o que não é o mesmo que o direito à felicidade. A diferença é fundamental. A procura da felicidade implica a idéia de liberdade política, a possibilidade de o cidadão fazer – dentro da lei - escolhas que lhe sejam convenientes de acordo com o seu desejo. Mas não se pode falar em direito à felicidade, pois isto implicaria no salto de uma categoria político-social para uma outra, situada em um outro campo, aquele do existencial, do desejo e da fantasia. Quem pode garantir um “direito” à felicidade, se esta é algo evanescente, impossível de generalizar por se configurar de forma singular e especifica para cada um? Por acaso, pode-se falar num “direito” de ser mais feliz, se a felicidade for entendida como ter uma outra dotação de inteligência, ter uma outra aparência, possuir uma outra cor de pele ou outra altura - para se dar alguns exemplos corriqueiros?
A resposta é negativa, pois a distribuição de dotes realizada pela natureza é totalmente aleatória, ao azar, não se submete a nenhuma norma do “direito”.
Entretanto, os avanços da tecnociência médica permitem realizar intervenções antes impensáveis no manejo do corpo humano, possibilitando mudanças no aspecto formal (cirurgias estéticas) e até mesmo no gênero sexual (cirurgias transexuais). É o que faz com que a ideologia do consumo se aproprie destes procedimentos médicos e os ofereça como uma novo bem a ser consumido.
Essa confusão entre direito a buscar a felicidade e direito a ser feliz tem duas consequências imediatas.
Uma delas é do âmbito do psicológico. Ela propicia a negação dos limites inevitáveis e irremediáveis que a realidade impõe a nossos desejos. Afinal, dentro do exemplo acima, haverá sempre pessoas mais inteligentes, mais bonitas, mais altas, do que outras. Ter de reconhecer, admitir e aceitar as diferenças entre o eu e o outro, um outro que poderá ser ou ter tudo aquilo que o eu deseja e não pode ter ou ser é o resultado de um longo e indispensável percurso a ser trilhado pelo ser humano na conquista do crescimento psíquico e emocional.
A outra consequência do embuste promovido pela publicidade é que ao prometer “direitos” impossíveis, ela propositadamente confunde a noção de direitos do cidadão com os direitos do consumidor.
A ideologia do consumo veiculada pela publicidade alimenta o narcisismo infantil existente em todos nós. Ela promete a felicidade e a realização de todas as nossas fantasias onipotentes de beleza, força, encanto, poder, charme sexual. Para tanto, basta comprar tal ou qual mercadoria.
Todos nós, ao vermos um anúncio de qualquer bem de consumo, com todas as promessas de beleza, felicidade, sucesso sexual, afetivo e profissional ao que teríamos acesso com sua aquisição, sabemos que aquilo é um logro, um engano, uma mentira. Mas, lá no fundo, uma parte de nós tende a acreditar, quer acreditar. É justamente aquela parte que se rebela contra os impedimentos e as limitações que a realidade nos impõe e quer restaurar o narcisismo onipotente perdido em nosso desenvolvimento. Ao nos constituirmos como sujeitos, tivemos de abdicar da fantasia de fazermos uma totalidade com a mãe, tivemos de aceitar nossa incompletude e construir, a partir dela, nossa existência.
É por isso que a publicidade comercial funciona. Ela, com grande habilidade, manipula nossos mais regressivos desejos inconscientes.
Sob este aspecto, a psicanálise e a publicidade estão em campos rigorosamente opostos. A psicanálise nos confronta com a falta, a incompletude, por saber que é somente a partir da abdicação do narcisismo e da onipotência que podemos crescer e viver plenamente. A publicidade faz o inverso. Alimenta a fantasia onipotente e narcisista de completude através da aquisição de bens de consumo.
Mas o que acontece quando as pessoas compram o objeto de seu desejo? Elas ficam mais felizes, como promete a publicidade?
Claro que não. Em primeiro lugar porque o desejo humano estará sempre insatisfeito, pois ele se baseia na restauração de uma impossível completude com o corpo da mãe, imagem de paraíso para sempre perdido. Por causa disso, quando se obtém aquilo que se deseja, o obtido imediatamente tende a se desvalorizar e a procura recomeça. De certa forma, a produção capitalista intui isso. Ao planejar a obsolescência de seus produtos, visa, por um lado, o lucro desmesurado; por outro, ao criar sucessivas versões de um mesmo objeto, atende não a critérios objetivos e racionais que deveriam reger a aquisição de bens necessários, mas à economia do desejo, da fantasia, da busca por um objeto, por definição, inalcançável.
De qualquer forma, seja pela própria estrutura do desejo que faz impossível sua satisfação, seja pelas promessas ilusórias da propaganda, o que ocorre após a compra é que, passada a euforia da aquisição, o consumidor se depara com uma grande decepção. Ele constata então que o objeto fetiche que adquirira não o deixa imune ao sofrimento, à dor e à angústia, elementos afetivos inalienáveis da condição humana.
Tal frustração pode descambar numa “depressão”. As aspas vão por conta do excessivo uso deste diagnóstico por parte de leigos e profissionais da saúde, a ponto de torná-lo o atual mal da sociedade. Essa “depressão” difere da efetiva depressão decorrente de perdas e dificuldades de elaborar o luto. Esta “depressão”, tão difundida hoje em dia, decorre do penoso reencontro do consumidor com a realidade (interna e externa), que se mantém inalterada, ao contrário do afirmavam as vãs promessas da publicidade.
(Este artigo foi publicado na revista “E” do Sesc-SP, agosto de 2008, no. 135)
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